quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Brasil - Rumo à Lagoa de Pitangui

Entrei no carro com o entusiasmo de quem sabe onde fica um oásis. Fechei a porta, abri as janelas, coloquei uma música calma e deixei o carro deslizar suavemente pela estrada secundária que leva à BR101. De ambos os lados não se vislumbram casas, pessoas, animais ou qualquer tipo de movimento que perturbe a tranquilidade dos canaviais. Rodeiam-me extensas plantações de cana-de-açúcar. Olho em volta e acredito que cada espiga encerra segredos centenários que remontam ao tempo dos engenhos. Quando as mãos ceifavam caules, em longos abraços, lançando-os no fogo que os transformava em mel de açúcar. Fazendas centenárias que se ergueram da orla das praias, correndo pelo chão, aceleradas, até ao coração deste país. Desenraízaram-se matas, vales e montes, rasgaram-se as entranhas da terra, conquistaram-se montanhas para depois adormecer no silêncio de um mar de caules generosos e folhas de sílica, que tornam este paralelo o mais doce do planeta. Olho para a floresta de canas e vejo as mãos de índios, escravos e capitães percorreram-nas. Corpos suados, com roupas andrajosas, mãos calejadas e braçadas de canas debaixo de um calor que os arrastava sem sombra. Chego ao cruzamento da BR101. Daqui até à Lagoa são uns meros 10Km. Pelo caminho, a estrada está repleta de povoações humildes. Conduzo devagar, aproveitando a orlada de palmeiras que trepa sob o meu céu azul. A esta hora, já os velhos cumprem a liturgia diária na sombra oblíqua das igrejas. Crianças em grupo caminham ao longo da estrada a caminho da escola. Sacolas às costas, fardas azuis, camisas brancas, imaculadas, sorriso moleque estampado na cara e mãos doces que acenam e nos afagam a cara. Sorrimos. Do outro lado da estrada um grupo de mulheres caminha em direcção à labuta dos canaviais. Rafeiros aventuram-se dengosamente na frente dos carros. Uma lomba, outra lomba ali. O asfalto eleva-se, desproporcionadamente, na frente de cada casa, num convite a olharmos a vida alheia. Casas modestas feitas de tijolo cinzento, sem portas ou janelas, apenas buracos por onde rodopiam as poucas brisas que por aqui passam. Nas portas, amontoam-se as cascas de coco, algum lixo, roupa estendida, e uma pobreza de mãos vazias, presa a um recanto do Nordeste, à espera de ser engolida pelo turismo de massas. Viro para uma estrada de terra batida. Cor de sangue. Fim do tudo e começo do nada. É a porta de entrada para o deserto das dunas. Para lá das poucas palmeiras, esconde-se um frágil ecossistema, feito de lagoas de águas transparentes, cavalos selvagens e aves migratórias que por aqui nidificam. Até lá, o caminho é sinuoso e corremos o risco de ficar atolados na areia. Não conhecemos bem os segredos das dunas e as chuvas da noite escondem crateras no areal onde facilmente metade do carro se aninharia. Conduzo devagar. À cautela. Evitando qualquer imprevisto. Sonhámos com a Lagoa o ano inteiro por isso não queremos frustrar as nossas expectativas.
Fotogr: CRV

4 comentários:

João Videira Santos disse...

Vista à distância sem o som da natureza, ei-la bucólica no som que se adivinha.

Como sempre, o olhar substituí a poesia que o momento captou.

Parabéns!

Paralelo Longe disse...

Obrigada pelo comentário João, mas ainda falta o texto :). Antecipei-me com a fotografia, são as saudades de blogar e a falta de tempo para o fazer. Bjs e o resto já está na forja.

Olga disse...

Ti, what a beautiful description, you are a very talented writer. It is great how many details you are able to spot and how many comparisons to make. It is like you see the world with completely different eyes and are able to appreciate certain things so much more...

You know, I have never thought I'd say so, but I miss autumn. It is such a tranquil and reflective time usually after the hectic summer. In India although the locals perceive it as winter - it is summer for me - hot and hectic.

Paralelo Longe disse...

Olá Zélia,

Obrigada pelo seu comentário.
Gostei da sua descrição de Bicho Indomável. De certa forma identifico-me com ela. A descoberta de nós próprios é um desafio ao qual nunca consigo resistir. Gosto muito do seu país. Magnífico, cheio de sol, calor e cores mil. Este post fala sobre uma região do Nordeste que conheço muito bem e me agrada muito. Quem sabe se um dia ainda não nos encontramos por lá.
Um beijo e obrigada pela sua visita.
Cristina