terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Brasil - Paraíba - A Baía da Traição (2)


Índios Potiguaras - Ritual do Toré
No meio do nada, a cancela ditava a fronteira entre dois mundos. Para trás deixávamos uma vila parada no tempo, com falta de infra-estruturas, com falta de população activa, com falta de vida. Pela frente, um letreiro anunciava a entrada no território dos Potiguaras. Curiosamente, não dava as boas vindas, lançando sobre a nossa visita uma estranha sensação de intrusão em propriedade privada. Talvez tenha sido esta a única vez que senti uma curiosidade voyerista que me fez transgredir a tranquilidade de uma comunidade fechada. Queria tomar-lhe o pulso, confrontar o seu modo simples e despretensioso de encarar a vida, com aquele que se vive nas sociedades assimétricas, bajuladoras das comodidades e dos artifícios sociais onde poucos se conhecem verdadeiramente, para além do status e das formas cénicas exteriores, geralmente vazias de conteúdo, e fortemente muradas com paliçadas de receio da selva interior.
Aldeias indígenas da Baía da Traição
Na entrada da reserva, o alcatrão cede lugar a uma estrada arenosa. Misto de lama, areia, cascalho e raízes entrelaçadas, torna-se difícil distinguir onde estão os charcos e as crateras de água, que se vão multiplicando no percurso, à medida que progredimos para o interior da reserva. A estrada, que subitamente se transformou em caminho, dando lugar a um sobressalto na floresta, parecia ter, objectivamente, uma intenção de desmobilizar quem até ali se aventurava. Por todo o lado esbarrávamos em troncos caídos que impediam o caminho e nos obrigavam a optar por alternativas improvisadas. Do nada, surgiam crateras cheias de água que tinham que ser medidas a pulso e vara, por vezes, fazendo-nos recuar, alterando trajectos, e pactuando com as leis da floresta onde a marcha é ditada pela intensidade das chuvas, pelas árvores que regressam à terra, pelo caudal imprevisível dos cursos de água, pelo nascer do sol e pelo crepúsculo duvidoso que envolve tudo num breu tenebroso, que nos expõe ao mais infantil dos pesadelos imaginados.

Ao passar por uma aldeia, conseguia ver o fumo que trepava das fogueiras por entre a folhagem das árvores. Algumas mulheres ateavam-no. Algumas crianças brincavam. Sem perturbar a privacidade a descoberto continuei sem sair do carro. 
Na reserva, a vida corre com a tranquilidade de todos os dias. Não se recebem turistas, nem se colocam penas de arara e pavão para demonstrações de danças de guerra ou pactos de amizade. Aqui, a comunidade é o que é, sem acolher os de fora porque se bastam com os de dentro da casa. 
Pela estrada, aqui e acolá uma corda de roupa comunitária. Roupas simples, soltas ao vento, rasgos de civilização improvisada no meio da mata. 

As casas, são de uma simplicidade desarmante. Feitas de troncos, tábuas e telhados de folha de palmeira, são impermeáveis às chuvas intensas que caem de Março a Julho. Obedecendo a um modelo comum, as paredes apresentam um sistema rudimentar de ventilação, aproveitado da disposição planificada das tábuas. Propositadamente erguidas com folga, as frestas ditam a entrada da brisa fresca, bem vinda nos dias em que o calor aperta. 

Reserva Potiguara
As janelas, recortadas de lado, ou numa meia porta disfarçada, são contornadas com troncos jovens de árvore, completando a arquitectura primária que se mantém inalterada, há centenas de anos, como se o despojamento de bens e a humildade constituíssem um orgulho de marca desta comunidade.

Lá dentro, o chão de terra batida tem o conforto de uma esteira de palmeira. As varas ou as redes suspensas, presas às tábuas e troncos da casa, servem de cama, berçário e enfermaria. Dormindo com a vida suspensa, evitam-se os animais nocturnos, as cobras, os escorpiões e os animais furtivos atraídos pelo calor das cabanas facilmente introduzidos pelas frestas das paredes.

Mais à frente, não se via vivalma. A aldeia, quase deserta de gente, sugeria que os habitantes estivessem nas suas fainas. A pesca do camarão, a caça na floresta e os trabalhos nas plantações de cana, são herança de uma presença portuguesa escravizada. Vive-se ao compasso do mar e da floresta, longe dos faustos e da cobiça desnecessária. Perto da natureza. Perto da verdade das chuvas e das aspirações da terra.
Na reserva, não há lojas de artesanato, nem comitivas de boas-vindas. Nem indígenas com danças festivas, mascarados com tangas sumárias e penachos de arara ou caudas de pavão deslumbradas. Aqui não se ensaiam preâmbulos de paz, nem se bebem os travos dos canibais quando encetavam os sinais complexos de mais uma guerra. Os poucos residentes que avistamos mantêm-se ao largo, poupando a alma das objectivas alheias e procurando a tranquilidade dentro da sua paz. Tímidos, com calções e camisolas do mundo estranho de fora, ocultam-se atrás da sua sombra, evitando a curiosidade descarada do nosso olhar que certamente lhes trespassava a privacidade. 

Com a cristianização, e os sucessivos povos invasores, os Potiguaras foram adaptando as suas tradições aos padrões culturais dos habitantes rurais não indígenas da região. Apesar de viverem numa comunidade demarcada, a maior parte das tradições folclóricas ancestrais foram-se diluindo, subsistindo apenas a dança do Toré, do rol de danças indígenas. Símbolo de resistência guerreira, o Toré é um ritual que tem cariz festivo e religioso. Feito de ritmos, o maracá dá o tom das pisadas no círculo que une o grupo, resgatando os antepassados, relacionando-os com a natureza, reafirmando a colectividade perante a sociedade.
Potiguaras da Baía da Traição

Com as ligações bloqueadas a norte devido à intensidade das chuvas reagendámos a rota, abandonando a estrada que nos levaria ao longo da costa para norte prosseguindo, cautelosamente, para sul pois a noite em breve nos apanharia. 

Os Potiguaras exercem sobre o visitante o mesmo fascínio que os Amish ou os judeus ortodoxos. A praxis de manterem um equilíbrio, entre a vida do clã e o distanciamento do mundo, provoca no viajante um voyerismo extasiado que nos faz ter a percepção nostálgica dos valores das comunidades fechadas, onde se exalta a defesa do grupo, a partilha das tradições e a história de um povo que orgulhosamente defendeu o seu território contra uma multiplicidade de invasores que os viam como mão de obra escravizada. Permanecer na terra dos antepassados é, hoje em dia, uma opção que tem o custo da sobrevivência abaixo dos padrões que ditam o limiar da pobreza. Por outro lado, tem a compensação da liberdade, das lendas guerreiras contra os povos de outras cores. Ser um índio Potiguara é dominar os segredos da floresta que se contam em voz baixa, o cheiro da terra depois das chuvas, as árvores que se agigantam em redor das aldeias, o orvalho da manhã que se insinua ao amanhecer, o restolhar dos troncos e folhas secas que tapeteiam as veredas e as estradas improvisadas onde se efectuam as melhores caçadas, a felicidade de uma águia que rasa uma clareira de água. O território dos Potiguaras é toda esta comunhão inalienável com a natureza. Prescindir do local da Baía  da Traição seria prescindir de ser indígena. Seria prescindir de ser um leopardo camuflado por entre as árvores da floresta antiga.

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