quarta-feira, 17 de junho de 2020

Brasil - Rio Grande do Norte - Genipabú

Sentados no palanque, com o sol quente debruçados sobre a Foz do Rio Ceará Mirim, observamos tranquilos as movimentações dos barqueiros que transportam para a outra margem, bugies e veraneantes a caminho das praias e das dunas. O pequeno Parque Ecológico das Dunas de Genipabú, estende-se desde o Natal para norte, ao longo de 25 km de praias, vilas de pescadores e lagoas de água doce.
Para estes passeios é necessário contratar um "buggeiro" credenciado uma vez que o terreno é acidentado e todo o espaço encontra-se integrado numa área de preservação ambiental, com espécies de animais e plantas nativas das dunas, resistentes à falta de água, ao alto índice de salinidade e à falta de nutrientes, sobrevivendo num meio agreste onde ocorrem flutuações de temperaturas drásticas entre a noite e o dia.
Passar para a outra margem é sinónimo de um dia erguido entre o mar, os destroços da embarcação Tereza Pança e os coqueirais ondulantes de Maracajaú.
Fotogr: CRV

terça-feira, 17 de julho de 2018

Brasil - Rio Grande do Norte - "Villa do Sol" - O Dia Seguinte

Regressamos à "Villa do Sol". 
O refúgio na Foz do rio Ceará Mirim, simples, tranquilo, feito exactamente à medida das nossas férias, com o sol quente do nordeste e as praias de areia branca que percorremos de jeep ao entardecer. Regressamos ao fim de algum tempo. 
O tempo necessário para reencontrar tudo como queremos.
Fotogr: CRV

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Brasil - Rio Grande do Norte - Regresso à Villa do Sol


CRV© Tibau do Sul - Cerberus
Pareceu uma eternidade mas finalmente fizemo-nos à estrada passando pela enorme estátua de Cerberus. Tibau do Sul é tudo menos Hades e o cão tricéfalo aqui não come os vivos, nem os condenados, nem mesmo aqueles que já se fizeram à balsa de Caronte com óbolos nos olhos, nem os outros a quem alguns julgavam presumivelmente mortos.
Aqui, também não há uma porta de Tártaro, nem serpentes cuspidoras de fogo, muito menos qualquer impedimento para voltar ao nosso refúgio tranquilo, mais a norte, com vista para o mar, onde o sol se põe sobre a linha do horizonte.
Contudo, podemos sempre seguir embalados por Zéfiro e imaginar que somos um misto daqueles que conseguiram escapar às garras do sub-mundo de Hades.
A estrada segue rumo aos últimos dias de férias, a nordeste, num refúgio pouco conhecido, chamado só por alguns, “Villa do Sol”.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Brasil - Paraíba - A Baía da Traição (2)


Índios Potiguaras - Ritual do Toré
No meio do nada, a cancela ditava a fronteira entre dois mundos. Para trás deixávamos uma vila parada no tempo, com falta de infra-estruturas, com falta de população activa, com falta de vida. Pela frente, um letreiro anunciava a entrada no território dos Potiguaras. Curiosamente, não dava as boas vindas, lançando sobre a nossa visita uma estranha sensação de intrusão em propriedade privada. Talvez tenha sido esta a única vez que senti uma curiosidade voyerista que me fez transgredir a tranquilidade de uma comunidade fechada. Queria tomar-lhe o pulso, confrontar o seu modo simples e despretensioso de encarar a vida, com aquele que se vive nas sociedades assimétricas, bajuladoras das comodidades e dos artifícios sociais onde poucos se conhecem verdadeiramente, para além do status e das formas cénicas exteriores, geralmente vazias de conteúdo, e fortemente muradas com paliçadas de receio da selva interior.
Aldeias indígenas da Baía da Traição
Na entrada da reserva, o alcatrão cede lugar a uma estrada arenosa. Misto de lama, areia, cascalho e raízes entrelaçadas, torna-se difícil distinguir onde estão os charcos e as crateras de água, que se vão multiplicando no percurso, à medida que progredimos para o interior da reserva. A estrada, que subitamente se transformou em caminho, dando lugar a um sobressalto na floresta, parecia ter, objectivamente, uma intenção de desmobilizar quem até ali se aventurava. Por todo o lado esbarrávamos em troncos caídos que impediam o caminho e nos obrigavam a optar por alternativas improvisadas. Do nada, surgiam crateras cheias de água que tinham que ser medidas a pulso e vara, por vezes, fazendo-nos recuar, alterando trajectos, e pactuando com as leis da floresta onde a marcha é ditada pela intensidade das chuvas, pelas árvores que regressam à terra, pelo caudal imprevisível dos cursos de água, pelo nascer do sol e pelo crepúsculo duvidoso que envolve tudo num breu tenebroso, que nos expõe ao mais infantil dos pesadelos imaginados.

Ao passar por uma aldeia, conseguia ver o fumo que trepava das fogueiras por entre a folhagem das árvores. Algumas mulheres ateavam-no. Algumas crianças brincavam. Sem perturbar a privacidade a descoberto continuei sem sair do carro. 
Na reserva, a vida corre com a tranquilidade de todos os dias. Não se recebem turistas, nem se colocam penas de arara e pavão para demonstrações de danças de guerra ou pactos de amizade. Aqui, a comunidade é o que é, sem acolher os de fora porque se bastam com os de dentro da casa. 
Pela estrada, aqui e acolá uma corda de roupa comunitária. Roupas simples, soltas ao vento, rasgos de civilização improvisada no meio da mata. 

As casas, são de uma simplicidade desarmante. Feitas de troncos, tábuas e telhados de folha de palmeira, são impermeáveis às chuvas intensas que caem de Março a Julho. Obedecendo a um modelo comum, as paredes apresentam um sistema rudimentar de ventilação, aproveitado da disposição planificada das tábuas. Propositadamente erguidas com folga, as frestas ditam a entrada da brisa fresca, bem vinda nos dias em que o calor aperta. 

Reserva Potiguara
As janelas, recortadas de lado, ou numa meia porta disfarçada, são contornadas com troncos jovens de árvore, completando a arquitectura primária que se mantém inalterada, há centenas de anos, como se o despojamento de bens e a humildade constituíssem um orgulho de marca desta comunidade.

Lá dentro, o chão de terra batida tem o conforto de uma esteira de palmeira. As varas ou as redes suspensas, presas às tábuas e troncos da casa, servem de cama, berçário e enfermaria. Dormindo com a vida suspensa, evitam-se os animais nocturnos, as cobras, os escorpiões e os animais furtivos atraídos pelo calor das cabanas facilmente introduzidos pelas frestas das paredes.

Mais à frente, não se via vivalma. A aldeia, quase deserta de gente, sugeria que os habitantes estivessem nas suas fainas. A pesca do camarão, a caça na floresta e os trabalhos nas plantações de cana, são herança de uma presença portuguesa escravizada. Vive-se ao compasso do mar e da floresta, longe dos faustos e da cobiça desnecessária. Perto da natureza. Perto da verdade das chuvas e das aspirações da terra.
Na reserva, não há lojas de artesanato, nem comitivas de boas-vindas. Nem indígenas com danças festivas, mascarados com tangas sumárias e penachos de arara ou caudas de pavão deslumbradas. Aqui não se ensaiam preâmbulos de paz, nem se bebem os travos dos canibais quando encetavam os sinais complexos de mais uma guerra. Os poucos residentes que avistamos mantêm-se ao largo, poupando a alma das objectivas alheias e procurando a tranquilidade dentro da sua paz. Tímidos, com calções e camisolas do mundo estranho de fora, ocultam-se atrás da sua sombra, evitando a curiosidade descarada do nosso olhar que certamente lhes trespassava a privacidade. 

Com a cristianização, e os sucessivos povos invasores, os Potiguaras foram adaptando as suas tradições aos padrões culturais dos habitantes rurais não indígenas da região. Apesar de viverem numa comunidade demarcada, a maior parte das tradições folclóricas ancestrais foram-se diluindo, subsistindo apenas a dança do Toré, do rol de danças indígenas. Símbolo de resistência guerreira, o Toré é um ritual que tem cariz festivo e religioso. Feito de ritmos, o maracá dá o tom das pisadas no círculo que une o grupo, resgatando os antepassados, relacionando-os com a natureza, reafirmando a colectividade perante a sociedade.
Potiguaras da Baía da Traição

Com as ligações bloqueadas a norte devido à intensidade das chuvas reagendámos a rota, abandonando a estrada que nos levaria ao longo da costa para norte prosseguindo, cautelosamente, para sul pois a noite em breve nos apanharia. 

Os Potiguaras exercem sobre o visitante o mesmo fascínio que os Amish ou os judeus ortodoxos. A praxis de manterem um equilíbrio, entre a vida do clã e o distanciamento do mundo, provoca no viajante um voyerismo extasiado que nos faz ter a percepção nostálgica dos valores das comunidades fechadas, onde se exalta a defesa do grupo, a partilha das tradições e a história de um povo que orgulhosamente defendeu o seu território contra uma multiplicidade de invasores que os viam como mão de obra escravizada. Permanecer na terra dos antepassados é, hoje em dia, uma opção que tem o custo da sobrevivência abaixo dos padrões que ditam o limiar da pobreza. Por outro lado, tem a compensação da liberdade, das lendas guerreiras contra os povos de outras cores. Ser um índio Potiguara é dominar os segredos da floresta que se contam em voz baixa, o cheiro da terra depois das chuvas, as árvores que se agigantam em redor das aldeias, o orvalho da manhã que se insinua ao amanhecer, o restolhar dos troncos e folhas secas que tapeteiam as veredas e as estradas improvisadas onde se efectuam as melhores caçadas, a felicidade de uma águia que rasa uma clareira de água. O território dos Potiguaras é toda esta comunhão inalienável com a natureza. Prescindir do local da Baía  da Traição seria prescindir de ser indígena. Seria prescindir de ser um leopardo camuflado por entre as árvores da floresta antiga.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Brasil - Paraíba - A Baía da Traição (1)


Baía da Traição - Praia do Forte © CRV
Sentada no cimo da colina, no que resta do antigo Forte armado com 3 canhões ferrugentos que estoicamente ainda observam os movimentos da Baía, acompanho o tranquilo vai-vem das ondas, numa praia que foi palco da história, terra de índios e de conquistadores, marinheiros e escravos, colonos e fazendeiros. 
Rumamos a sul por um dia. Regressamos ao Paraíba para percorrer os 100 Km de costa deserta que acompanha a reserva nacional dos índios Potiguaras.
Baía da Traição - Forte
No ano de 1501 Américo Vespúcio aportou aqui. Conta a lenda que os indígenas foram surpreendidos com o desembarque de homens estranhos, seduzidos com oferendas, espantados com as diferenças. Receptivos aos estrangeiros, acolheram no acampamento os emissários. Partilharam alimentos, o artesanato, as danças locais. Por isso os portugueses regressaram. Na tarde de 17 de Agosto de 1501, quando Vespúcio lançou novamente âncora estava confiante nas suas boas relações com os indígenas. O envio de um pequeno bote, com um séquito de três marinheiros, destinava-se a abrir caminho à comitiva que se preparava para desembarcar. Mas as notícias da chegada dos portugueses, mais a sul, tinham trazido até à povoação histórias de crime, subjugação e destruição, pelo que a recepção foi diferente. Quando os 3 portugueses desembarcaram, foram violentamente atacados, presos, mortos e canibalizados, perante a perplexidade dos portugueses, que assistiram a tudo da caravela ancorada ao largo. Do incidente surgiu o nome que ainda hoje se mantém. 
Pipa - Baía da Traição - BR 101
A Baía da Traição e o Rio Tinto, no litoral setentrional do Paraíba, constituem os únicos territórios onde habitam descendentes dos mesmos índios que ocupavam estas terras, muito antes de 1500. Habitavam o Nordeste, aproximadamente entre as actuais cidades de João Pessoa, no Paraíba, e a cidade a norte de São Luís do Maranhão. Por essa altura eram mais de 100 mil. Hoje, são pouco mais de 13 mil. 

A Baía da Traição tem as características de uma pequena povoação do nordeste. As casas são baixas, geralmente de andar térreo, pintadas em tons de branco e amarelo ocre com portadas coloridas. O povo aqui não preenche as ruas. Desertas, o único movimento que descobri vinha de um pequeno café no largo principal cujos vidros estavam decorados com cartazes amarelecidos pelo sol que anunciavam gelados e outros produtos já indecifráveis. Lá dentro, o mobiliário de madeira, numa versão de western brasileiro sem qualidade e gasto. Meia dúzia de mesas pequenas, com jarros de água duvidosa, cartazes velhos nas paredes e uma sensação de sujidade acumulada, confirmada não só pelo balcão gorduroso e carcomido como pelo tom enegrecido das paredes.  O mundo tinha desistido há muito tempo de girar por ali. 
- A reserva índia? perguntei. 
- Lá! Ao fim da estrada! Tem uma cancela. Tem de pedir para passar mas atenção que são pouco amistosos e não gostam de reportagens.
Guardei a máquina e conduzi até encontrar uma cancela branca, pintada com riscas obliquas encarnadas, como nas passagens de nível de comboio. Um guarda incógnito, sem farda, nem com qualquer curiosidade em identificar-nos, levantou lentamente a cancela fazendo-nos entrar no território dos Potiguaras, os descendentes dos que massacraram os três portugueses de outrora.
(continua)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Brasil - Pipa - A Praia de Minas

Pipa - Praia de Minas

Para lá de Pipa, rumo ao sul, depois das praias do Moleque e do Amor, onde os surfistas navegam nas montanhas de espuma, chegamos à praia de Minas. O acesso faz-se por uma estrada improvisada, misto de areia seca e terra encarnada, onde o vento revolve tudo e os remoinhos de areia imitam pequenos tornados que dançam sobre as escarpas da praia. Aqui, não sei se é da costa desprotegida ou da falta de pontões de abrigo, o que é certo é que o mar passou dos tons de azul turquesa para os cinzentos agitados, com ondas de espuma rasteira e segredos bem guardados.

O areal é extenso, selvagem. À beira-mar as canas solitárias, os limos verdes e as algas encarnadas, tatuam na areia o contorno do vai-vem das ondas consoante as marés que crescem sobre a praia. Por todo o lado as dunas, com o aspecto dos desertos selvagens, com tufos de ervas robustas nas dobras húmidas da areia, dando um ar de savana rasteira à praia. Este, é daqueles locais onde a paisagem cresce em liberdade, longe da intervenção do homem, reforçando a ideia das vantagens da preservação da costa. Saio do carro e aproximo-me de um cartaz gasto pelo sol. A área protegida tem o apoio governamental, justificada por razões de preservação das várias espécies que elegeram o local para procriar ou nidificar. Agrada-me a ideia! Nas dunas, por entre as ervas, algumas estacas brancas de madeira sugerem-me epitáfios pobres. Daqueles que foram equívocos na vida. Longe de tudo. Silenciados no arco do tempo. Desprovidos de futuro. 
No topo, algumas inscrições esborratadas a azul. Datas e números ressequidos. Vários. Sem nexo. Ao acaso. Por perto, a explicação das estacas. Ao contrário da imagem do fim, marcam os felizes segredos do areal. A 1m de profundidade, escondem-se ninhos de tartarugas, Cabeçudas e de Pente, que escolhem estas praias desertas para nidificar. Ameaçadas, encontraram refúgio nestas paragens, que se encontram, desde os anos 80, integradas no projecto TAMAR.
Com apoio governamental, e subsidiado pela poderosa Petrobraz, o projecto TAMAR acompanha, desde há 30 anos, os locais privilegiados de reprodução de 5 espécies de tartarugas ameaçadas nas costas do Brasil. A Cabeçuda, de Pente, a Verde, a Oliva, e a de Couro, são avistadas frequentemente nas épocas de postura, sendo a tartaruga de Pente a mais frequente nas praias de Pipa. 
O projecto Tamar surgiu nos anos 70 quando um grupo de estudantes de Oceanografia viajou para o Atol das Rocas, 240 quilómetros a Norte e, durante um passeio à noite pela praia, presenciou uma cena grotesca: doze tartarugas fêmeas, que se encontravam a escavar os seus ninhos, tinham sido viradas ao contrário, enquanto um pescador as degolava. 
A cena macabra foi fotografada e muito embora já as espécies estivessem ameaçadas, só nos anos 80 se lançaram os primeiros projectos de protecção à fauna marinha com a construção do projecto "Tartaruga Marinha", abreviadamente conhecido por TAMAR. Dos 100 km de costa, inicialmente patrulhados apenas por voluntários colocados em praias estrategicas, evoluiu-se para os apoios governamentais e internacionais, alargando-se o raio de acção para os 600 km de costa com maior proliferação de ninhos. Por ano, nas praias do nordeste, eclodem cerca de 1 milhão de jovens tartarugas, contabilizando o projecto, desde o seu inicio, cerca de 15 milhões de juvenis libertados no mar. As estimativas prevêem que em cada 100, apenas 2 ou 3 tartarugas consigam completar o ciclo, de 15 a 30 anos, até atingir a maturidade, mas o futuro é promissor com a alteração da classificação das espécies, de "perigo de extinção" para "ameaçadas".
Em Pipa, a temporada reprodutiva ocorre de Outubro a Maio, período influenciado directamente pela temperatura ambiente, com largadas nas praias e grande agitação no turismo das povoações locais. Os pescadores já compreenderam que o potencial económico do turismo das tartarugas excede qualquer benefício que pudessem retirar da sua pesca artesanal. Por isso mesmo, de caçadores passaram a protectores dos segredos do areal, guardando os ninhos e revezando-se em vigílias intermináveis.
Contemporâneas dos dinossauros, as tartarugas marinhas existem há mais de 150 milhões de anos. Evoluíram do ambiente terrestre para o aquático, adaptando a sua capacidade respiratória e os batimentos cardíacos às descidas em profundidade. Fundamentais na difusão dos ideais conservacionistas, a protecção dos seus habitats tem tido o complemento desejável do despertar de uma consciência ecológica e a sustentabilidade das espécies a longo prazo.
Deixo a praia em repouso. As estacas intactas. E os ninhos que fervilham de vida, escondidos por baixo de um areal virgem. Tranquilo. 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Brasil - A vila de Pipa

CRV© Praia de Pipa
Contam os habitantes que há 25 anos Pipa era uma vila de pescadores de costas voltadas para o progresso. Depois, nos finais dos anos 70, as ondas revoltas e quentes trouxeram os primeiros surfistas. Alguns vinham só por uma temporada. Outros, fixaram-se. Com eles cresceu uma comunidade singular, longe de preconceitos e de formatos sociais, com conotações hippies e uma forma anárquica de encarar o mundo e a vida. Fazendo apologias ao amor e à paz, trouxeram os charros, parques de caravanas e roullotes degradadas, transformaram as casas dos pescadores em comunidades habitacionais auto-sustentáveis mas, principalmente, trouxeram a alegria e um dinamismo rejuvenescido a uma população envelhecida e fechada. Os trapos, as tendas, as rastas e as pranchas de surf enceradas, passaram a fazer parte do quotidiano da vila, transformando os hábitos e as mentalidades do povo, acreditando que Deus se havia lembrado de uma gente esquecida, recebendo os de fora como uma dádiva pacata. Com o tempo, as comunidades anárquicas cresceram e Pipa passou de destino hippy, pouco conhecido, a local de veraneantes de temporada. Abraçaram-se os novos visitantes, melhoraram-se as infraestruturas, proporcionando alojamento adequado, criou-se o Parque Natural das Dunas e a Reserva Ecológica, apurou-se a gastronomia do nordeste, mimou-se quem chegava e assegurou-se que regressassem. Na década de 90, Pipa era já um destino conhecido, com uma cadência própria e um movimento diário bipolar, não obedecendo aos gostos dos madrugadores fazendo, por isso mesmo, as delícias de quem gosta de aproveitar a madrugada.
CRV© Pipa - Rua Principal
O movimento na vila começa tarde, sempre depois do meio-dia. Até lá, o comércio e a maior parte dos recantos gastronómicos encontram-se encerrados. A praia é a alternativa saudável. Com um areal pouco extenso, a praia de Pipa centra-se na gastronomia e nos petiscos de ocasião. Os vendedores passeiam-se sob um calor tórrido, apregoando discretamente os doces da região ou as ostras frescas com limão. Ao longo da praia, as tasquinhas servem sopas de caranguejo e agulhas fritas, cervejas frescas em barricas com gelo e lagostinhas apetitosas. 
Na maré baixa, formam-se inúmeras piscinas naturais encalhando cardumes de peixes coloridos. Cobras riscadas, peixes balão e agulhas laranjas e azuis fluorescentes passeiam-se à nossa frente, ansiosos com os fotógrafos e com as crianças que mergulham para os agarrar. Para sul, o areal estende-se por 10Km. Aos destemidos, a caminhada inicia-se para lá do pontão, rumo às praias desertas, onde o vento sopra forte, a areia se levanta e as ondas se agigantam, sendo os únicos pontos de referência, os fatos e as pranchas coloridas dos surfistas. 
CRV© Pipa
Pipa é atravessada por uma única rua direita. Daí irradiam uma série de becos e pequenos arruamentos onde se aglomeram os restaurantes e os locais de peregrinação nocturna. Na rua principal, abundam as lojas de artesanato e o comércio de recordações personalizadas que procura fugir às vendas produzidas para o público de massas. 

Na vila, gosto particularmente de um lugar tranquilo. Da rua principal, desvio à esquerda e entro num pequeno beco que passa por baixo de uma fiada de casas. Cheio de plantas e janelas em volta, o caminho desagua num pequeno restaurante em palanque sob a praia. A comida é divinal. A vista é soberba. Com as pequenas embarcações dos pescadores a ondularem num mar em sossego, aproveito para por as minhas notas em dia enquanto aguardo pelo famoso petisco da casa. Depois, é só desfrutar do calor, da vista e da tranquilidade de uma tarde apetecivelmente ensolarada, até que chegue mais um repousante pôr-do-sol.
Brasil - Pipa - Aug 2008 photo DSC_1979B_zps8f802652.jpg
CRV© Pipa - Praia dos Pescadores

domingo, 20 de outubro de 2013

Brasil - Entre Tibau do Sul e Pipa

Estrada Tibau do Sul - Pipa
CRV©
Apenas 9 Km separam Tibau do Sul da Vila de Pipa. A viagem faz-se pela estrada que contorna as falésias, com dunas de areia branca de um lado e escarpas laranjas recortadas sobre praias desertas, do outro. Conduzo sem tempo, nem pressa, tirando partido do culto do mar e do sol, dos pequenos restaurantes escondidos nas praias e do por-do-sol ajustado às heteronomias da nossa disposição.
CRV©
Ao longo da estrada vou observando o parque das dunas.
Ao contrário da zona a norte do Natal, onde as dunas promovem o turismo dos buggies e dos desportos radicais das areias, aqui as montanhas de areia foram transformadas pelos ecologistas em àrea protegida, inacessível à presença dos veraneantes.
À tona deste oceano de areia, pairam sempre alguns abutres, solitários planadores das dunas, aproveitando as correntes ascendentes da falésia. Paro num miradouro e aproveito para fotografar as suas acrobacias sobre uma praia deserta. Parece que se deixam levar pelo vento, abandonados à sorte das rajadas e das correntes ascendentes, equilibrando-se nas longas asas pretas, enquanto esquadrinham todos os planos geométricos do solo na esperança de alguma revelação. Viro costa à enseada e consulto o meu Guia 4 Rodas que me dá mais à frente algumas sugestões de 3 e 4 estrelas, de acordo com o dialecto dos simbolistas. A estrada aqui é para degustar devagar, como quando não há pressa em decifrar os sinais do tempo ou quando um rio flui e se aloja no melhor dos silêncios da voz. É nestes momentos que nos vence o apetite voraz da liberdade e da cumplicidade com o que nos rodeia, explorando os espaços envolventes como se de uma aventura única se tratasse, com os braços cortando o vento, acariciando o teorema complexo de tudo o que nasceu para se transformar em beleza. Há locais no mundo com os quais sentimos uma estranha afinidade. Não precisam de ser monumentais, nem plenos de cultura, nem feitos pela mão do homem. Podem ser ermos solitários com os quais tecemos, ao longo do tempo, uma estranha lealdade. Solos únicos, adaptados às nossas sensações primárias, que são fumo a partir do qual crescemos radiando como os pontos cardeais na direcção de todos os desafios. Conduzir com as mãos contra o vento dá-nos sempre a sensação transcendente de conquistar obstáculos, vencer marcos geométricos, superar todos os locais carregados de estranhas profecias, partindo do exílio para as grandes epopeias de dentro.
Reserva Ecológica de Pipa
A estrada. Páro num dos locais com estrelas, com a sensação de poder desfrutar de um bocado do céu na terra. Entro num dos santuários do silêncio. Rodeada de árvores de troncos brancos e esguios, caminho por entre cajueiros, muricis, bromélias, begónias, orquídeas, cipós,  saguins e pássaros exóticos que insisto em fotografar como se lhes apanhasse alguma area do canto ou a sua imagem contivesse alguma profecia messiânica proveniente dos ventos de boa vontade. A Reserva Ecológica tem 120 hectares preservados num labirinto escondido, por dentro da alma da falésia, com caminhos de areia branca e uma humidade tropical que nos faz querer correr para o mar, expurgando o calor abrasador que se cola ao corpo e que nos faz arrastar o andar. Serpenteando a falésia, os caminhos ganham nomes de outros tempos, quando os piratas procuravam as águas tranquilas destas paragens e o Mirante das Tartarugas partia da ponta do Madeiro até à Baía dos Golfinhos levantando o pano da folhagem, abrindo-se numa janela luminosa sobre o mar.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Brasil - Tibau do Sul - Baía dos Golfinhos

CRV© Baía dos Golfinhos

domingo, 16 de junho de 2013

Brasil - Tibau do Sul - A Baía dos Golfinhos

CRV©Baía dos Golfinhos
CRV©
Os finais de Julho coincidem com as últimas semanas da estação baixa, quando as chuvas caiem quentes e abundantes, pelas noites tropicais dentro, dando apenas tréguas ao despontar dos primeiros raios de sol. 
Os planos levam-nos aos 10 km de estrada que ligam Tibau do Sul a Pipa e que percorrem o topo da falésia que se eleva sobre as pequenas enseadas e o mar. A estrada, estreita e esburacada, tem do outro lado o Parque Natural das Dunas, uma barreira de silêncio formada por pirâmides de areia branca, lisas e frágeis, como castelos de cartas, que frequentemente se elevam e rodopiam, por acção do vento da tarde, vindo morrer junto à estrada. 
Contra o céu azul, alguns abutres, de um negro pesado e obscuro, sempre presentes no cenário das paisagens do nordeste. Planam, suspensos por uma única motivação, durante horas, desenhando círculos sobre as dunas, na esperança de saciarem a fome, com alguma carcaça insólita, grotesca, que desencantem, esquecida nalguma sombra remota.
CRV©
A meio do trajecto, um habitante local sugeriu a Baía dos Golfinhos "Mas vá devagar, pois não está assinalada". Não fosse o menino de calções e caracóis russos, agitando pequenos sacos de amendoins na berma, o acesso às escadas que descem para a Baía, passaria despercebido, simulado na densa vegetação. 

"É aqui o local da Baía?" a pergunta deu lugar à compra de um saquinho de amendoins e a um dedo indicador que apontou para o meio da mata. "Ali!". O acesso, esculpido pelo meio das árvores, estava tapetado com casca de árvores secas. A descida leva-nos a uma pequena unidade hoteleira que explora o resort da escarpa. A servir-lhe, uma escada privada de madeira, demasiado íngreme, tornada pública, que descia, quase na vertical, morro a baixo, por entre a vegetação, e que sugeria cautela de modo a não colocar pés em falso, potenciando a queda na descida. Pelo caminho, os habitantes da mata. 
CRV©
Pequenos saguins despudorados que invejam os amendoins e os gelados de quem passa, pedindo com a mão a esmola dos que nada têm, mas tudo conseguem, pela graça, pela pequenez dos gestos e pelos olhos assustados cheios de infundados receios. 
Em baixo, a praia surge intermitente, por entre a ramagem. Provavelmente por tradição, todos param na descida e se sentam na subida, num palanque alargado, improvisado a meio das escadas. Aproveito o descanso, para as primeiras fotografias da Baía e dos saguins que se aproximam, para os silêncios de espírito e as primeiras notas do dia. 
Hoje, denominada pelos turistas como Baía dos Golfinhos, a praia do Curral adquiriu o seu verdadeiro nome da prática da captura de peixe através da instalação de "currais feitos de varas", que mais não são do que armadilhas onde se introduz um isco de modo a surpreender o peixe. Uma vez abocanhado o isco, o ladrão passa a presa, surpreendido nos anzóis agarrados à ingestão do  petisco indevido.
CRV©
Finalizada a descida, percebemos a razão porque esta é uma das praias mais famosas da região. O acesso difícil desmobiliza a invasão das massas promovendo, no extenso areal, inúmeros recantos apetecivelmente desertos. Ideal, para quem gosta da tranquilidade do vai e vem das ondas, a Baía é um imenso anfiteatro emoldurado pela falésia coberta de um verde intenso forrado pelo arvoredo da mata. Protegida do vento, dizem que as ondas do mar têm aqui queda para a prática do surf, acolhendo uma escola de pequenos iniciados que se deliciam com a companhia de um grupo de ruazes que faz questão de correr com eles na crista das ondas. Geometrias felizes, feitas de pequenos nadas, rastilhos de memória que respiram e tingem de cor os regressos através de uma escrita projectada.
CRV© Baía dos Golfinhos
CRV© Baía dos Golfinhos
CRV©
CRV©

sábado, 25 de maio de 2013

Brasil - Tibau do Sul - Na Foz da Lagoa de Guaraíras

Lagoa de Guaraíras ao Entardecer CRV©

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Brasil - Tibau do Sul - Ao entardecer...

Lagoa de Guaraíras CRV©
Os entardeceres, em Tibau do Sul, são suspensos entre a inclinação do sol poente, quando toca rente às dunas da outra margem, e a tranquilidade do palanque de madeira que sustem uma bebida fresca, para matar a sede, ao final da tarde.

Nesta margem, o pôr do sol faz-se no meio de um número generoso de adeptos, que se vão acomodando ao desconforto do terreno, balançando pela encosta acima, motivados pela promessa de um entardecer, cercado por este pequeno mundo onde nos enredamos, entre campo e praia, próprio dos labirintos tranquilos, com portas entreabertas para um verão que se faz poeta e se deixa render.

No bar, a azáfama, limitada aos 30 minutos diários, corta a pacatez da planície coberta pelas águas e as falésias arborizadas que sustêm o areal descontrolado, pelo vento que o embaraça, entre as brisas e as rajadas da tarde.

Pelo meio, crepes doces e salgados, bebidas geladas que amordaçam ligeiramente a voz solitária. Queimam-se os minutos em excesso, relaxam-se as emoções, faltam-nos as palavras, escrevem-se sensações. Por uma fresta da paisagem, o sol vai descendo nesse suicídio místico que constitui uma imensa subversão das regras, pois renasce viçoso, logo pela manhã, contrariando a fórmula duvidosa que jurava que já não haveria mais refracções da luz poisada nos nossos olhos tingidos de esperança.

Entre a queda e a penumbra escrevem-se duas ideias, três poemas. Registos, que são crateras no pensamento, ansiedade, admiração, solfejo de uma ária que nos bafejou, timidamente, com as mãos côncavas do vento, a revolver todas as preces suspensas das palavras, na nostalgia do sol poente.
CRV©

domingo, 27 de janeiro de 2013

Brasil - Tibau do Sul - Lagoa de Guaraíras

Lagoa de Guaraíras - daqui
CRV©
Para lá da vila, quando a encosta cai sobre as águas da lagoa, há um santuário de garças brancas que nidificam numa ilha verde, assente em pés de mangue, onde proliferam as ostras e os canais de água doce. Tranquila, como o pôr-do-sol, a Lagoa de Guaraíras surge, imprevista, do lado esquerdo da estrada quando as curvas deixam vislumbrar, por entre as árvores e o casario modesto, um azul intenso que se funde com o céu, como se uma janela se abrisse na paisagem e fosse revelação de um desses instantes sagrados de beleza. 
À chegada, subimos à colina do Marina's Resort de onde se avista a baía em repouso, com os seus 8 km de extensão e 2 de largura, as margens arenosas, algumas ilhas verdes e a confluência agitada junto à foz, quando as águas da lagoa se misturam, numa turbulência cinzenta, com as ondas do mar. Nas margens em redor, aqui e ali, pequenas habitações de madeira, erguidas pelos pescadores de ostras que têm, enterrado no lodo negro, os seus viveiros artesanais. 
Na outra margem, uma vastidão de dunas silenciosas estende-se até ao mar, imperturbável com a agitação diária dos buggies que vêm de norte, pela beira mar, dos lados do Natal. 
CRV©
Entramos numa dessas pirogas de madeira que se fazem pelo meio da lagoa. O guia, um pescador de ostras, fez a promessa de nos levar aos viveiros, ao santuário das garças e, talvez com sorte, ter por companheiros de viagem uma família de golfinhos que costuma dar as boas vindas com exibições efusivas nas zonas mais profundas da lagoa. Com um sol abrasador e uma chuvada tropical avançamos, lentamente, por entre o silêncio de ilhéus de mangue, onde proliferam diversos tipos de aves pesqueiras, grandes crustáceos e uma infinidade de pequenos seres que encontram neste local o habitat perfeito para se fixarem. Em perfeita sintonia com a natureza virgem, e tendo apenas como som de fundo o bater dos remos na água, navegamos pela tarde dentro, por entre canais de mangue, alguma vegetação densa, uma ocasional prega do vento e um imenso mar de águas tranquilas onde a beleza sussurrava em voz baixa que nos deixássemos ficar.
CRV©

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Brasil - Sempre chegaram os Saguins!

CRV©
Começam a ouvir-se com o nascer do sol. Leves como uma pena, franzinos e cinzentos como ratos famintos. Atraídos pelo barulho da zona dos pequenos almoços, depressa chegam com malabarismos amestrados. Saltam de árvore em árvore, movidos pela fome e pela secura esbugalhada. Pequenos no tamanho, exaltados nos movimentos bruscos e dessincronizados, fazem lembrar crianças hiperactivas que ora se aproximam a pedir uma esmola de pão, ora fogem a sete pés quando nos aproximamos sem qualquer intenção. Têm olhos hipertiróidicos, bocas pequenas e dentes serrilhados. Na cabeça, os penachos brancos, por cima das orelhas, dão-lhes um ar apalhaçado que nos rende em tímida perplexidade. Ágeis como um raio, correm excitados pelas traves do tecto, empoleirando-se, ora pela cauda, ora pelas garras das patas traseiras, pedindo bagos de uva e outras frutas da época. Oportunistas, entre o pequeno furto e a oferta, desdobram-se em malabarismos intermutáveis, passando, rapidamente, para mãos não comprometidas, o saque orgulhoso que lhes rendeu mais uma refeição gratuita. 
CRV©
Estranhei, no primeiro dia, estes pequenos acrobatas não terem aparecido. A espécie encontra-se ameaçada e muito embora o governo federal tenha tomado medidas de protecção, o seu habitat natural tem vindo a ser progressivamente dizimado pela febre da construção clandestina e pelo deficiente planeamento urbano da região. Mal gerida pelo homem, a mata atlântica, na orla costeira, tem vindo a ser engolida pela construção desenfreada de casas de veraneio e por um turismo personalizado que não deixa, contudo, de se instalar em território alheio. O choque, inevitável, gera situações como as que me foram relatadas. 
CRV©
No ano anterior, uma campanha de desratização levada a cabo por todo o distrito, atingiu a população de saguins de  forma alarmante, tendo-se verificado uma taxa elevada de mortalidade que quase levou à extinção na região. 
Foi com alegria que vi este pequeno grupo aventurar-se até tão perto de nós,  atrevendo-se a reclamar algumas migalhas, deixando um sinal de esperança com as suas quatro pequenas crias.
CRV©
A uns escassos 150m da costa, o resort é mais um dos que se inserem no limiar do habitat dos saguins. Com as devidas cautelas, procura compatibilizar o sentimento proteccionista com os requisitos de desenvolvimento turístico do Estado, evitando o confronto e a invasão para lá das construções já edificadas e retirando partido das visitas matinais que são um dos atractivos da região. 
O “resort” insere-se num jardim densamente arborizado, com vegetação típica da mata atlântica. O acesso à orla costeira, é feito por um caminho privativo, que parte das traseiras do resort, e segue arriba abaixo, serpenteando o pequeno morro, por uma estreita vereda que desagua numa praia minúscula, rochosa, mas belissimamente deserta.

CRV© Praia de Tibau do Sul

domingo, 4 de novembro de 2012

Brasil - Tibau do Sul

CRV© Tibau do Sul
Acordei com o desassossego dos saguins. Com o nascer do dia, vêm em bandos até à pousada, atraídos pelos cheiros das frutas e dos sumos. Correm pelos telhados dos bungalows em direcção ao palanque dos pequenos almoços onde, invariavelmente, lhes espera uns petiscos oferecidos pelos turistas rendidos aos malabarismos e às correrias em torno das traves do tecto. 

Deixamos na tarde anterior Carapibús, no Paraíba, e regressamos ao Rio Grande do Norte para nos instalarmos em Tibau do Sul, uma pequena povoação a 9 Km da vila de Pipa. É a segunda vez que voltamos aqui. Regressámos pela tranquilidade, pelas paisagens e porque preferimos sempre o sossego de uma pousada longe da agitação de Pipa, que é uma vila sedutora, para um passeio à noite ou um jantar à luz das velas, mas acaba por se identificar com os centros turísticos com o movimento, as lojas, as compras e a folia que queremos tanto evitar. 

Por entre as cortinas, os primeiros raios de sol rompem com uma intensidade luminosa que enche o quarto por completo. Lá fora, o resfolhar dos troncos das árvores prende-se com a algazarra dos saguins que entram em competição com bandos de pássaros que chegam aqui igualmente atraídos pelas migalhas que podem roubar no café da manhã. Fico a observa-los da janela. Sem me mexer, para não os assustar.
Os jardins que nos rodeiam são de um verde intenso que convidam ao repouso, seja relaxados numa rede suspensa ou simplesmente a escrever um poema sobre as sensações deste lugar. Os bungalows encontram-se estrategicamente camuflados no verde da paisagem. Localizados numa área densamente arborizada, a distribuição é generosa, proporcionando a privacidade desejada em torno de cada um. 
CRV© Tibau do Sul
CRV© Tibau do Sul
No centro do resort, uma piscina e um bar, onde se servem caipirinhas doces e cervejas geladas, muito para lá do por do sol.
Noites tranquilas. Refúgios luminosos. Grandes apologias.

domingo, 14 de outubro de 2012

Brasil - Entardecer em Carapibús


Carapibús - CRV© 
Carapibús - CRV©

Aos poucos, a luz vai-se desdobrando num tranquilo final de tarde. Esbatem-se os contorno e as coisas transformam-se em vultos, adensando as sombras em redor que parecem crescer sobre nós, transportando-nos desta latitude para uma outra dimensão da realidade. 

O entardecer em Carapibús percepciona-se como uma daquelas combustões da natureza com a qual traçamos laços na nossa biografia. Ao fundo, o mar, a preencher o horizonte ao modo de anfiteatro, completando todas as partes côncavas do recife que contorna a solidão da praia. Uma brisa quente, quase agreste, costuma acompanhar a descida do dia, erguendo pequenas nuvens de areia que se aninham junto aos limos, à beira-mar. Ao longe, os vultos vagarosos e indolentes dos últimos banhistas abandonam a praia. À medida que se afastam, tomam-lhe o lugar, bandos de pássaros e gaivotas irrequietas que procuram, na linha de água, alguns crustáceos solitários que ali chegaram enrolados na tirania oscilante dos limos. Vultos de caranguejos minúsculos invadem a praia. Aparecem de todo o lado, brancos, de pinça afiada, sem quaisquer afinidades colectivas, pois é cada um por si, sem subserviências ou autoritarismos desenfreados. Correm, histericamente, desde as suas tocas até aos rolos de limos à beira mar e procuram aí, algum minúsculo cadáver insepulto que possam transportar, silenciosamente, até ao seu refúgio no xadrez do areal. 

Agarrei a areia fina, como se agarrasse o tempo dentro de uma ampulheta e não o deixasse avançar. Com a noite a aproximar-se, e a escuridão a girar com formas brilhantes e suaves sobre as palmeiras, observei, com os olhos quase cegos, os contornos amplos daquele espaço aberto. A beleza propaga-se pelas nossas artérias, com uma enorme serenidade, quando as imagens que percepcionamos são desprovidas de qualquer ambiguidade ou complexidade. Deitada, numa profusão de areia fria, coloquei os olhos fixos no céu e comecei a acompanhar o rasto claro das estrelas.
Carapibús - CRV©